terça-feira, 30 de setembro de 2008

ESCUTATÓRIA

de Rubem Alves.


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: "Mas isso não é nada..." A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma." Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas." Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não "evangélico"), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado." Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou." Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou." E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em "U" definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: "Meus irmãos, vamos cantar o hino..." Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto... (O amor que acende a lua, pág. 65.)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

O buraco é do Moreira ou o buraco é do Marcelo?

Em tempos de eleição, estamos todos em pavorosa e apavorados com a sede de vencer dos políticos que mais uma vez começam seus discursos com "Eu prometo...". Prometem governos fantasiosos, diga-se de passagem, clichês em essência, afinal todos querem saúde, educação, segurança e transporte não é mesmo? A diferença está no que se fala, nas expressões, ou melhor, no "falar bonito".
Não só ser um aspirante a sofista, mas também tem que ter(habilidade) uma boa aparência (aliás vocês repararam que a Jandira Feghali tirou sua franja transgressora?) e para isso temos todo um aparelho tecnológico (photoshop, prazer). O partido é o que menos importa, as coligações estão um samba do crioulo doido. Pra quem viu o Partido Comunista ser abafado na Segunda Guerra Mundial, estou chocado com o "entreguismo" do pessoal da esquerda e como o presente tá chato, vamos fugir (proutro lugar baby) para outros tempos...

Começaria com Paulo de Frontin com quem sentei longas tardes na varanda de sua casa em Serra da Raiz de Petrópolis. Engenheiro, foi ele quem junto com o Pereira Passos(O Cesar Maia da Bélle Époque) mudou a encanação e deixou tudo com a garantia dos canos Tigre. Minha patroa se deixou banhar até os dedos das mãos ficarem enrugados, ô água boa! Criou também a Avenida Niemeyer, a Delfim Moreira e alargou a Av. Atlântica. Ele está pra Niemeyer, assim como Pereira Passos está pra Cesar Maia: foram grandes construtores. Éramos bastante amigos, eu e o Frontin. Quando precisei levantar meu puxadinho pra eu passar as noites em claro escrevendo sem minha patroa reclamar, foi a Frontin que recorri e nada me cobrou. Apenas o seu voto nas eleições de 1919.

Outro prefeito que marcou a história da cidade maravilhosa foi Carlos Sampaio. Ô bicho teimoso esse cabra! Foi com ele que me pegaram em 1922 com a mão na butija, quer dizer, com o corpo todo: Tava enroscado com o comunismo até nas ventas. Mas reconheço que foi um bom político e uma de suas grandes façanhas foi acabar com o Morro do Castelo, o "pai" do Rio de Janeiro. Magnífico, bravo, só Édipo faz melhor!

Pra finalizar outro prefeito que marcou meus tempos de cabelo grisalho, foi Pereira Passos. Esse nem preciso falar muito, os livros já falam demais! Por conta do "sanitarismo" dele, levei porrada de um soldado de três metros de altura e ainda levei uma agulhada na bunda à força! Revolta da Vacina? Eu estava lá e não havia nenhum Zé Gotinha pra me salvar!


Não obstante, o Rio precisa mudar e só com a revolução nas ruas literalmente, o purgatório da beleza e do caos ficará mais mais ajambrado: http://br.youtube.com/watch?v=3FtupQxxhiY&NR=1

sábado, 13 de setembro de 2008

Error

Estava eu sentado em frente ao meu computador quando o mesmo emitiu o som de uma campainha. No entanto, era um barulho que expressava um equívoco, um erro fatal, do tipo “Não acredito que você fez isso!”. Pra piorar, as minhas parvas caixas de som (que me acompanham desde os tempos de 486) estavam ligadas no último volume me causando um estado emocional muito forte, de suar frio.

Assim, tomado de assalto, interrompido abruptamente na mecânica do abre e fecha janela, o barulho me causa nesse instante uma ruptura entre o antes e depois desse momento devastador, dessa castração sonora promovida pelo meu computador. O timbre grave gerou uma angústia que não consegui fazer mais nada, me levando ao estado parecido das vítimas que sofrem de estresse pós-traumático: Eu poderia dizer que sofro de estresse pós-barulho de erro de software.

Imagine agora analogicamente a situação trágica do sujeito. Todos os dias temos que tomar decisões que variam entre zerovírgulazerozerozeroum miligramas até as mais pesadas que nos custam uma bigorna de uma tonelada. Por mais que nossa rotina nos faça andar em círculos como os bois dos engenhos de cana (Vide Lavoura Arcaica), somos sujeitos com uma dimensão ética e que possuimos responsabilidade em nossas escolhas. O que quero dizer é que nosso destino não está dado de antemão e somos nós que sustentamos nossas idéias, pensamentos e escolhas tais para construir nossos referenciais.

O sujeito, diferentemente do computador, responde ao mundo de diversas possibilidades e nunca da mesma forma. O computador, por mais teimoso que a pessoa seja, age sempre igual e se for o caso de exigirmos alguma tarefa que ele não possa cumprir, pronto, o estrondo do equívoco aparece. Já o indivíduo não: Para cada ato, age de uma forma bem específica e ao mesmo de modo que não seja totalmente pensado, calculado e que possa ser previsível como no caso da engenhoca cibernética.

Essa especificidade nos é conferida pela linguagem. Essa não é apenas um meio pra se falar das coisas, mas ela constitui um mundo e mais, um imundo. Ela nos condena a nos dizer certas palavras, às vezes com duplo sentido, de forma incompleta. Para Ronald Barthes, a língua é fascista, isto é, na medida que nos obriga a dizer certas coisas.

O “error” angustiante que o computador apresenta é um tapa na cara em nós que toda hora agimos de modo impreciso e mesquinho, sendo atravessado por inúmeros significados que a cultura nos dá. A impressão que dá quando ouço esse barulho aterrorizante é a mesma quando estou no ônibus e de repente ouve-se um tiro. Instalado o pânico na hora. Um baque que nos reduz a baratas tontas procurando o melhor lugar pra se esconder do baygon que no nosso exemplo é a bala perdida.

Mas veja você, alguma coisa se diz e depois de ser dito vê a posição do sujeito implicada no que ele disse. É assim, nós vamos fiando palavras que engendram discursos nas malhas da coesão e com as cores da coerência. No dia-a-dia, às vezes nos sentimos totalmente alheios a nós mesmos, quando por exemplo, num enterro ao invés de falarmos “meus pêsames” à viúva, falamos “meus parabéns”. Mas o que isso quer dizer? Será que foi um descuido sem culpa? O que eu tenho a ver com o que eu falei? O que eu disse?

A experiência nos mostra que a linguagem nos dá um certo basta e por mais que não sejamos culpados, somos responsáveis - isto é, não tem uma intenção, mas fui eu quem falou. O psicótico tira esse automatismo da linguagem: Se falarmos um ponto e que consensualmente é um ponto de ônibus, ele pode teimar em dizer ser o ponto de uma puta ou então gastar litros de “água mole” jogando em pedra dura esperando que essa fure.

Portanto, dizemos tal coisa pra não dizer outra e é por isso que não somos “Pentiuns”, “Macintoshs”, pois a cada descuido nosso (desculpe a redundância) nos descuidamos diferentemente. Mas uma coisa é certa: A afetação que isso nos causa pode ser tão potente quanto a do barulho devastador quando clicamos algo indevido e assim erramos.