quarta-feira, 18 de junho de 2008

Afasia

Numa bela noite clara, me deparei com a espiritualidade. Abro a porta do meu quarto, acendo a luz e um cigarro também pode ser. Nunca havia parado pra pensar nos espíritos, nessas coisas do além,sempre as achei cabalísticas no sentido mais etéreo que isso possa ter. Desde que encontrei Déscartes traço tudo num plano cartesiano e esqueço do resto. Só quero saber se matematicamente é viável e ponto. Somo e divido por dois. Não tenho paciência para religião: a única que aceitei foi o marxismo, mas logo que fundaram o PCB em 1922 pulei fora e adotei o famoso "Tenho espiritualidade independente de religião". Tenho sim, sou um católico impraticável assim como um esquerdista-liberal.
Eis a verdade, minha vida espiritual é um paradoxo. Até que num momento de total catarse (sem propósito, em plena segunda-feira) me entreguei a religião. Fui tocado por um sentimento diferente, parece que desligaram todas as minhas tomadas e assim, deixei de ter razão. Aliás, pra que ter razão sobre tudo? A razão foi inventada para alguns dizerem pouco pra muitos ouvirem. É de um plano de cima pra baixo, colocando todos ao pé da Grande Razão. Contata-se, não obstante, que os seres humanos(e eu odeio usar essa palavra) são pequenos e que muitas coisinhas acontecem e há de se teimar em reduzi-las em fictício, em sugestão, ilusão. São as historietas que aparecem aqui ou acolá, no jornaleiro, na fila do banco, nos fragmentos do cotidiano. São, na verdade, coisas fora da razão que nos fazem viver. Com razão, não há vida.
Por mais absurdo que isso pode parecer às vistas de um intelectual em formação que toma as palavras à ponta de faca ou então, como peças sólidas de um castelo imagético que possa dar conta das convicções, a razão é pouca.

E por não ter razão nenhuma, eu escrevi esse texto.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Os incompreendidos


Mais uma vez volto com a resenha de um filme que ganhei de aniversário de uma pessoa muito amiga minha. Se chama "Os incompreendidos" do diretor François Truffaut que ficou imortal pela sua contribuição ao cinema com a chamada nouvelle vague.
A priori, não estou interessado em uma apresentação do movimento na história do cinema e suas implicações, mas principalmente pelo que o filme chama mais atenção a ponto de ser descrito aqui no PSEUDEANDO.

É uma história verídica baseada na infância do próprio Truffaut que senão fosse o André Bazin, poderia ter seguido outro caminho como o próprio mostrado no filme, o da marginalidade. Trata-se do jovem Antoine Doinel, interpretado pelo Jean-Pierre Léaud, que "tem uma espécie de solene desapego, como se o seu coração estivesse marcado por profundas feridas adquiridas muito antes que o filme fosse rodado." Antoine mora com a mãe e o padrasto. Aquela é uma mulher nervosa, possui um amante, se angustiada com as condições de vida e com o próprio filho que ela faz questão de anulá-lo como sujeito, psicanaliticamente falando.O padrasto seria então o responsável pelo elo familiar e o que dá reconhecimento ao menino.

Antoine é um aluno indisciplinado, sujeito das pequenas infrações na escola como a de uma cena em que a foto de uma mulher nua passava de mão em mão até chegar na de Antoine quando então o professor o surpreende e o castiga. A partir daí, Antoine só aumenta sua indisciplina, falta a escola e quando perguntado o motivo de sua ausência, ele alega que a mãe morreu.

A mentira é sustentada até o momento em que a mãe aparece furiosa no colégio. Mas ao contrário do que seria previsto, a mãe não o castiga e o padrasto propõe uma saída com a família para o cinema. Parece ser um dos momentos mais felizes do filme que é marcado por um sofrimento atroz.

Antoine que é um garoto de doze anos, tem que lidar com situações que não estão dadas de antemão para um adolescente de sua idade. É nesse enredo fantástico de Truffaut que mostra a condição trágica do sujeito. É aí que o sujeito deve advir. A escola ortodoxa representada por um professor severo e às vezes sádico mostra o contexto da educação na época. Antoine se viu numa situação que ele fora obrigado sem ter mesmo pedido, embora tivesse o ingresso na mão. Ele teve que ser criado por uma mãe negligenciadora, por um padrasto que não é o pai dele, teve que ir pra escola todos os dias e teve que se expôr à arbitrariedade de um professor. Enfim, isso nos mostra como o nosso psiquismo é atravessado por um Real bruto.

O destino de Antoine como marginal ou como cineasta, este último como foi o caso de Truffaut, não está dado de antemão. É o próprio menino que irá sustentar essa responsabilidade pelos seus atos, idéias e construir pra si seus próprios referenciais. Antoine poderia ter sido, por analogia, as histéricas do século XIX que Freud as escutava sem ter uma fórmula ideal para curá-las. Assim como as histéricas, Antoine está num contexto social falido.
Freud ouve aquelas mulheres sabendo que este contexto social não dizia quem elas eram. Isso vai evocar a idéia do que é o corpo, a sexualidade, o que é ser mulher, o que é ser homem.
Pelas histéricas, constata-se que o corpo não nos pertence. Este pode adoecer, diz pro outro sobre a nossa idade, nossa origem. Um irreversível que a gente não domina. As histéricas estavam em um contexto que não ainda não havia movimento de libertação feminina.

Assim é o caso do pequeno Antoine que o professor nem quer saber da sua origem, das suas virtudes e do conflito que o jovem passa. Porém, a dimensão do sujeito está em tudo, como observou Freud, não está somente na esfera privada. O sujeito aparece com o sintoma. Os modos de subjetivação que indicam como se comportar, como ser um aluno, como ser um passageiro de ônibus não excluem o sujeito. Há uma lei que o sujeito precisa respeitar, mas ainda assim precisa se responsabilizar. Assim, Antoine advém onde ele deveria advir? Antoine advém como sintoma, istoé, como um rebelde, uma voz solitária na massa, como as histéricas que paralisavam o braço, a perna. O filme termina com o zoom da imagem congelada do jovem, olhando diretamente pra câmera. Ele acabou de fugir da prisão e está na praia, aprisionado entre a terra e a água, entre o passado e o futuro. É a primeira vez que vê o mar.


Contribuíram para a resenha:
Roger Ebert - "Os incompreendidos" in "A Magia do Cinema".
Aulas muito boas de psicanálise em 2008/1 da Fernanda Costa-Moura. ;)